sábado, 21 de novembro de 2015

Musashi


O romance Musashi, de Eiji Yoshikawa, é a obra literária de maior sucesso do Japão, com mais de 120 milhões de exemplares vendidos. Ele conta a história do samurai Miyamoto Musashi, que viveu entre 1584 e 1645. Publicado em capítulos no jornal Asahi Shimbun, entre 1935 e 1939, o livro foi adaptado para cinema, televisão e quadrinhos.

A publicação do romance por aqui, em 1999, marcou o início de uma onda de interesse por autores japoneses. A responsável por verter o texto para o português, Leiko Gotoda, se tornou a principal referência na tradução da literatura do Japão no País. Ela é sobrinha de Jun''ichiro Tanizaki, um dos grandes autores japoneses do século passado.

Musashi se tornou um sucesso inesperado. Ficou algumas semanas nas listas dos mais vendidos e acumulou tiragem de 110 mil exemplares dos dois volumes, com mais de 900 páginas cada um. "Para mim foi surpreendente mesmo", afirmou Leiko. "Eu estava pensando numa edição meio que familiar. Costumava perguntar para minha irmã: será que vende 500? E ela dizia: acho que sim, nem que a gente faça saia batendo de porta em porta, pedindo para os amigos ficarem com um."

Entre a decisão de traduzir o romance e a sua publicação, foram 10 anos. Musashi foi o primeiro livro japonês traduzido por Leiko. Até então, ela trabalhava como tradutora inglês-português. Resolveu traduzir o livro, que ainda não tinha editora, como uma forma de apresentar a cultura japonesa aos filhos, três homens e uma mulher, então adolescentes.

"Eu queria de algum modo fazê-los entender o que seria a cultura japonesa tradicional", explicou Leiko. "Não havia nenhum livro a que eu pudesse recorrer em português, e eles não lêem japonês. Achei que Musashi seria um bom livro, porque o tema gira em torno de um samurai. Também achei que eles se interessariam, pois são três homens em casa."

Filha de japoneses, Leiko Gotoda aprendeu a língua com a mãe. Ela começou há trabalhar como tradutora há cerca de 20 anos, depois de fazer um curso de tradução inglês-português na Associação Alumni. No início, traduzia textos técnicos do inglês. "Comecei bem tarde", disse a tradutora, que tem 67 anos. Antes de os filhos nascerem, Leiko era professora do ensino fundamental. Dedicou muitos anos à criação dos filhos, antes de estrear na tradução. Desde então, verteu para o português doze livros japoneses.

Para conseguir publicar Musashi, Leiko contou com a ajuda do marido, o empresário Nobuyuki Gotoda, nascido no Japão. "Aos 60 anos, ele se aposentou e disse: você me ajudou até aqui, agora eu vou te ajudar. O que você quer fazer? Eu disse: estou nesse ramo de tradução e quero ver se publico este livro, mas não sei como começar." Até então, as traduções eram encomendas das editoras.

Nobuyuki conversou com amigos e conseguiu uma subvenção da Fundação Japão para que Musashi fosse publicado, e apresentou o projeto à editora Estação Liberdade. "Para nós, era uma questão de tudo ou nada", destacou Angel Bojadsen, diretor editorial da Estação Liberdade. "Nunca tinhamos feito algo tão grande. Se funcionasse, sabíamos que seria significativo, pelo histórico e pelo porte da obra, mas, se não desse certo, quebraria a editora. Mas o sucesso veio bastante rápido, entramos em todas as listas de mais vendidos, e respiramos aliviados." Segundo ele, a edição brasileira é a única versão integral do texto no Ocidente.

TEXTOS DO TIO

Leiko traduziu autores como Haruki Murakami, o escritor japonês contemporâneo de maior sucesso internacional, e Kenzaburo Oe, Prêmio Nobel de Literatura. Ela diz que foi estranho trabalhar nos livros do tio, Jun''ichiro Tanizaki.

"É interessante, porque só a leitura não provoca essa sensação. Mas quando tive de traduzir, entrar no contexto da história, veio muito forte para mim a impressão de que estava espiando pelo buraco de uma fechadura", explicou Leiko. "Talvez porque meu tio escreva romances meio biográficos, em determinados instantes fiquei constrangida. Até eu falar que não, isto é um romance, eu sou uma tradutora e tenho de traduzir e ponto.''

A tradutora nunca teve contato com o tio escritor, que morreu em 1965. "Ele não era uma pessoa muito acessível, pela fama e tudo", disse Leiko. "Tinha um secretário que abria a sua correspondência. A minha letra em japonês é horrível e nunca me aventurei a escrever nada para ele. Só minha mãe escrevia. Até eu compreender que ele era um grande escritor levou um tempo."

Segundo ela, a imagem familiar de Tanizaki está de acordo com a imagem que teve dele como escritor, ao traduzir os livros: "Era uma imagem de extremo rigor. As obras dele são escritas com precisão incrível. O japonês dele é muito claro e puro. Não tem ambigüidade de espécie alguma. Não se tem esse rigor à-toa. É preciso ser muito rigoroso consigo mesmo. Essa visão de rigor, que eu tenho dele desde pequena, transparece nas obras. Não nos temas, mas no modo como ele compõe os textos deles."

Da obra de Tanizaki, ela destacou Há Quem Prefira Urtigas, Em Louvor das Sombras e As Irmãs Makioka, que traduziu. "As Irmãs Makioka faz parte de uma luta dele para fazer lembrar ao povo um Japão menos militarista, menos guerreiro, mais voltado às artes", disse Leiko. "Uma chamada para os velhos valores culturais e artísticos. Uma tentativa dele de despertar no japonês esse lado poético e sonhador, em uma época de guerra. Acho que essa obra vale muito nesse aspecto."

Leiko esteve três vezes no Japão. Ela apontou como a colônia japonesa no Brasil conservou traços da língua falada no Japão antes da guerra, que não existem mais por lá. "Minha mãe voltou ao Japão uma vez, em 1958, e, na ocasião, ela disse que ficou absolutamente abismada com o que tinha acontecido por lá, e as pessoas no Japão estranharam o modo de ela falar."

Segundo a tradutora, a televisão fez com que os sotaques regionais se perdessem no Japão, já naquela época, e os japoneses adotaram expressões em inglês com entusiasmo. "Minha mãe era da área de Tóquio", disse Leiko. ''Ela tinha muito orgulho em dizer que era pura edoko. Edoko é a pessoa que tem mais de quatro gerações na área de Edo, que é Tóquio."

Atualmente, ele afirma, a juventude japonesa tem adotado na fala as abreviações usadas nas conversas pela internet e por mensagens de celular, fazendo até com que os adultos do próprio país tenham dificuldade de entender algumas expressões.

Na visão de Leiko, ainda faltam no Brasil traduções de livros de samurais. "O Japão moderno, da tecnologia, bem ou mal as pessoas conhecem", explicou. "O Japão medieval, da época feudal, poucas pessoas que conhecem." Ela tem lido um autor chamado Shuhei Fujisawa, que mostra como era a vida no castelo feudal. O autor traça um perfil do samurai não somente como guerreiro, mas como burocrata.

"É divertido saber, por exemplo, que os samurais trabalhavam no castelo feudal", disse a tradutora. "Os samurais tinham um horário de entrada, trabalhavam o dia inteiro na área burocrática do castelo e tinham o horário de saída. Normalmente, a gente só pensa no samurai com a espada, que eles lutavam o dia inteiro. Mas os samurais tinham de estar lá no castelo e apresentar relatórios. Tinham de trabalhar em obras públicas." Caso fosse escolher o próximo trabalho, como fez com Musashi, Leiko traduziria uma obra de Fujisawa, que mostra o outro lado da vida do samurai.

[por Renato Cruz]

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